Joaquim Machado de Araújo
Alberto Filipe Araújo
Abstract
The story of Pinocchio, a fictional character by Carlo Collodi, depicts the formative course of a doll created by Geppetto from a bit of wood, which gains its own life and its own destiny, either in confrontation with its creator, or with the school as well as in interaction with real children until it views itself as one child.The present study followed the adventures of this doll which illustrate the classic contradiction between nature and nurture, embodied in the opposition between play and work whixh was solved by Pinocchio in three stages. In stage one, Pinocchio adheres to the Land of Play, the dazzling childish utopia of continuous recreation without school and without teacher. In stage two, Pinocchio experiences the dark side of his option by reducing itself to animality and, attempting to flee from death, ends up devoured by a Shark. In stage three the trans-formationprocess (Umbildung) begins, Pinocchio giving itself a destiny based on moral autonomy that voluntarily incorporates moral order, dedication to work and learning to read and write.In this study we stressed in every step of the way a childhood secret that deserves to be transposed as the basis of a pedagogical model namely the life of each child, the experience as source of knowledge and the sense of school work within the framework of an active pedagogy.
Keyword: Pinocchio, nature-culture, formation, pedagogy
Resumo
A história de Pinóquio, a personagem ficcionada por Carlo Collodi, retrata o percurso formativo de um boneco criado por Gepeto a partir de um bocado de madeira, mas que ganha vida própria e traça o seu próprio destino, seja em confronto com o seu criador, seja com a escola e em interação com meninos de verdade até se descobrir como um deles.
O presente estudo, segue as aventuras deste boneco que ilustra de modo sintomático a clássica relação entre natureza e cultura, corporizada na oposição entre brincadeira e trabalho e resolvida por Pinóquio em três fases. Numa primeira fase, Pinóquio adere à Terra da Brincadeira, a deslumbrante utopia infantil do contínuo recreio sem escola e sem professor. Numa segunda fase, experiencia o lado negro desta sua opção que o reduz literalmente à animalidade e, fugindo à morte que lhe é destinada, acaba devorado por um Tubarão. Inicia finalmente a terceira fase, aquela que culmina o seu processo de trans-formação (Umbildung), dando-se um destino baseado na autonomia moral que incorpora de modo voluntário a ordem moral, a dedicação ao trabalho e a aprendizagem da leitura e da escrita.
O presente estudo salienta em cada momento, um segredo da infância que merece ser transposto para princípio de um modelo pedagógico: a vida própria de cada criança, a experiência como fonte do saber e o sentido do trabalho escolar no quadro de uma pedagogia ativa.
Palavras-chave: Pinóquio; natureza-cultura; formação; pedagogia.
- Introdução
Criado a partir de um bocado de madeira, Pinóquio não passa de um boneco com forma física humana imprimida por Gepeto, o seu criador. Mas As Aventuras de Pinóquio são bem mais do que um conjunto de peripécias em que esta simpática personagem se envolve. A obra de Carlo Collodi dá conta de um processo de formação moral bem mais lento do que o processo de criação física e de uma modelação que depende muito menos da técnica e muito mais da sensibilidade e da consciencialização do próprio protagonista do processo formativo.
O nosso estudo é de caráter interpretativo e recorre a uma hermenêutica da narrativa que, seguindo esta História de um Bonecocomo destaca o subtítulo da obra, identifica, num primeiro momento, a tensão entre natureza e cultura e o importante papel que a sociedade e a economia da narrativa atribuem à escola no processo de aculturação das crianças. Este momento integra uma tensão entre a vivacidade da criança e a estruturação do trabalho da escola a que Collodi contrapõe a Terra da Brincadeira, um lugar utópico de eterna recreação que acaba por mostrar o lado negro de um processo que não é de humanização, mas antes de animalização.
Num segundo momento, o estudo procede a uma hermenêutica simbólica e desvela um processo de verticalização moral que assenta na morte iniciática do ser animalizado e a sua metamorfose em rapaz bem-comportado, num “segundo nascimento” em que sobressaem a água purificadora e o Tubarão devorador.
É este processo de individuação (Jung) de Pinóquio que inaugura o terceiro momento, reconciliando-o com os objetivos da escola e o leva a interessar-se pela leitura e pela escrita e, ao mesmo tempo, restitui à escola a importante função de dar aos que a demandam importantes instrumentos de cultura, que se revelam essenciais no processo de aprofundamento do encontro de Pinóquio com a sua humanidade.
São estes três momentos que nos conduzem à identificação de outros tantos segredos da infância e suportam uma perspetiva de escola ativa.
- Natureza e atividade da criança
A narrativa de Collodi dicotomiza a atividade da criança em dois polos opostos, o da brincadeira e o do trabalho. A brincadeira apresenta as características que Huizinga (2003) aponta para o jogo: o prazer experienciado na sua realização, o seu caráter “não-sério” denunciado pelo riso que a acompanha, a sua natureza livre, a distância que a separa do mundo quotidiano e faz entrar no mundo imaginário, as regras ocultas que a ordenam e a conduzem, o seu carácter fictício ou representativo e a sua limitação no tempo e no espaço. Na verdade, a brincadeira é uma ação voluntária da criança, um fim em si mesma, não cria bens nem riquezas materiais, não obriga a um produto final, tem um carácter improdutivo (Caillois, 1990). Ela depende muito de cada um dos seus agentes, das suas motivações e estímulos e não há qualquer obrigação que comprometa aquele que brinca, pelo que são incertos os seus resultados (Kishimoto, 1994, p. 113-114). Já o trabalho, tal como a vida produtiva, é uma coisa séria, é ação que se realiza com muito esforço e com pouco prazer, fazendo jus à sua raiz etimológica (de tripalium, instrumento de tortura sustentado em três paus aguçados).
A narrativa de Carlo Collodi privilegia a parte “séria” desta dicotomia e pressupõe que a “brincadeira” é uma fase que deve terminar quando inicia a escola, colocada por ele do lado do trabalho e como sua antecâmara, por nela se realizar o treino indispensável para a integração do estudante no meio social de que faz parte. Neste sentido, Pinóquio, depois de uma das suas traquinices, faz o que fazem todos os miúdos que querem obter alguma coisa. Chorando, ele promete a Gepeto exatamente o que este pretende dele: “- Prometo-te (…) que a partir de hoje vou ser bonzinho. (…) Prometo-te que irei à escola, que estudarei e que serei bom aluno. (…) Prometo-te, pai, que aprenderei um ofício e que hei de ser o teu consolo e o teu amparo na velhice” (Collodi, 2004, p. 33). E, obtido o que pretendia, manifesta a vontade de cumprir o prometido: “- Para te compensar de tudo o que fizeste por mim (…), quero ir já para a escola” (p. 34).
No caminho para a escola, o seu entusiasmo é alimentado por “mil pensamentos e mil castelos no ar” que lhe afloram à cabeça, “qual deles mais belo do que o outro”, e, “falando sozinho, dizia: Hoje na escola quero aprender logo a ler, e amanhã aprenderei a escrever, e no dia seguinte a fazer os números. Depois, com a minha inteligência ganharei muito dinheiro, e com as primeiras moedas que me caírem no bolso quero mandar fazer um belo casaco de lã para o meu pai” (ib, p. 37).
Curiosamente, na História de um Boneco Collodi faz-se eco da necessidade de recreação, primeiro no próprio móbil do ato de criação do boneco de madeira por parte de Gepeto e, depois, como tentação mais prazerosa do que o trabalho escolar, quando Pinóquio cede à sedução dos pífaros e da ambiência que a música proporciona, adia o cumprimento da obrigação de ir à escola, troca por dinheiro a cartilha nova que o pai comprara a muito custo e paga a entrada para o teatro de fantoches.
No entanto, a brincadeira vem a ser considerada apenas como atividade de recreação, como atividade socialmente aceitável, como contraponto ao trabalho, às atividades que exigem esforço físico, intelectual e escolar, na linha perspetivada por Aristóteles na Ética a Nicómaco: “O entretenimento é uma espécie de relaxamento, e temos necessidade de relaxamento porque não podemos trabalhar continuamente. O relaxamento, então, não é uma finalidade, pois recorremos a ele com vista à continuidade da nossa atividade” (, Livro X, 1177a; 1999, p. 201). O prazer que se busca no entretenimento vem a ser “remédio” para o esforço e o cansaço que o trabalho sempre provoca: “Não se trata, por certo, de simples prazeres, pois disso se concluiria ser, para nós, o prazer a finalidade da existência. Ora, se não é possível ser assim, é antes no trabalho que se tem de buscar distração, pois é exatamente quando se está cansado que se tem necessidade de descansar” (Política, Livro V, Cap. II, § 4; 2003, p. 159). Uma outra perspetiva seria admitir o jogo e a brincadeira como ocasião de extravasamento do excesso de energia em “atividades supérfluas” por parte de quem joga ou brinca, excesso esse que resultaria do desequilíbrio entre a sua capacidade e a possibilidade de participar em atividades “sérias”.
Pinóquio dá corpo a uma leitura do mundo da criança, segundo a qual esta, qual boneco completamente manipulável, é mandada para a escola e a bem ou a mal tem de estudar. E, face à obrigação e ao esforço que a esperam, reage como criança não motivada para aprender e ainda não socializada na importância da escola para a inserção na vida económico-social: “não tenho nem um bocadinho de vontade de estudar, e divirto-me mais a correr atrás das borboletas e a subir às árvores para tirar os passarinhos dos ninhos” (Collodi, 2004, p. 20). A sua natureza tão-pouco o impele ao trabalho, a alternativa honesta para quem não agrada a escola: “Entre todos os ofícios do mundo, há só um de que eu gosto. (…) O de comer, beber, dormir, divertir-me e levar a vida de vadio de manhã à noite” (p. 21). E virá mesmo a aceder a essa espécie de “Terra Prometida” dos meninos em idade escolar, que é Il Paese dei Balocchi, o País dos Brinquedos ou, como se lê na tradução portuguesa, a Terra da Brincadeira.
- A bendita e fascinante Terra da Brincadeira
A Terra da Brincadeira é apresentada a Pinóquio por Palito, o seu amigo predileto de entre os colegas da escola, mas também “o miúdo mais preguiçoso e o mais travesso da escola toda” (Collodi, 2004, p. 146). Se a versão da Disney de Pinóquio (1940) lhe chamar Island of Pleasure, Ilha do Prazer, Palito descreve-a como una vera cuccagna, um verdadeiro País de Cocanha, a terra mitológica sucedânea do paraíso terrestre onde se encontram a abundância de alimentos, a ociosidade, a eterna juventude e a liberdade (Franco Jr, 1998). Diz-lhe ele:
Lá não há escolas, não há professores, não existem livros. Naquela bendita terra nunca se estuda. Ao sábado não há escola, e as semanas lá compõem-se de seis sábados e um domingo. Imagina tu que as férias de Verão começam no primeiro dia de Janeiro e terminam no último de Dezembro. (…) [Lá, os dias] Passam-se a brincar e a divertir-se de manhã à noite. Quando é noite vai-se para a cama, e na manhã seguinte começa-se a brincar outra vez (Collodi, 2004, p. 147).
Essa “bendita terra” é descrita com as caraterísticas diametralmente opostas às da escola: não há hierarquias (professores) nem instrumentos (os livros) que “vergam” (metaforicamente) as crianças; não há horas marcadas para nada (é sempre fim de semana, logo não há trabalho); a única ocupação que aí se vê é “brincar” e “divertir-se”; as únicas pausas que aí se identificam são para descansar (“dormir”) para voltar a “brincar” e “divertir-se”. Ou, se quisermos identificar estas características em espaço e tempo escolar, a Terra da Brincadeira não tem tempos de aula, é contínuo “recreio”, deixa de ser pausa no trabalho para ser positivo espaço de divertimento sem fim temporal imposto.
São estas características da Terra da Brincadeira que atraem Pinóquio, lhe fazem “crescer água na boca”, não lhe permitem tornar decisivas as suas respostas negativas ao convite do amigo e o levam a retardar a volta para casa: “É uma vida que eu também faria de boa vontade!” (ib., p. 147); “- Que beleza de terra! Eu nunca lá estive mas imagino como é!” (ib., p. 149); “Que beleza de terra!” (ib., p. 149); “Que beleza de terra!… que beleza de terra!… oh! Mas que beleza de terra!” (ib., p. 150).
O encanto da Terra da Brincadeira cinco vezes “bela” pela vida que merece ser vivida “de boa vontade” vem-lhe da sua característica própria das utopias, “a inversão pura e simples da realidade”, que Ruyer diz ser “a experiência mental mais fácil” (1988, p. 49). A apresentação do “novo” mundo como a cópia invertida daquele mundo de que o utopista aspira sair é bem-sucedida, não apenas por esta inversão simples da realidade, mas também porque “corresponde ao ressentimento oculto sob o desejo de poder do utopista, e ao negativismo do intelectual e do especulativo. (…) Face às imperfeições da realidade, a reflexão menos cansativa para a inteligência, e aquela que consola melhor o sentimento, é dizer-se que tudo iria melhor se se pusesse tudo ao contrário” (Ruyer, 1988, p. 50).
Outra característica do Paese dei Balocchi é o eudemonismo coletivo: “Vem daí connosco e viveremos todos felizes!”, como apela Palito e apelam as vozes dos passageiros da carruagem que os conduz para o mundo de utopia (Collodi, 2004, p. 152-153). Na verdade, a moral do utopista “apela ao que de mais elevado há na natureza humana” e alimenta o sonho de felicidade (Ruyer, 1988, p. 52). Aí, “ninguém podia estar mais feliz e contente do que eles” (Collodi, 2004, p. 156).
A terceira característica da Terra da Brincadeira é que nela não há limitação da liberdade de brincar: “Vamos para uma terra onde ninguém nos impedirá de brincar de manhã à noite”. Este é, de facto, o argumento mais convincente para Pinóquio: “Façam lugar para mim; também quero ir” (Collodi, 2004, p. 153). O fascínio que Pinóquio tem pela brincadeira é superior à sua consciência do dever de estudar, de ser bom aluno à semelhança de qualquer rapaz bem-comportado, e de acordo com a promessa que ele fez à Fada, pois o fascínio lúdico mora dentro de si e apela à transgressão das regras e do conforme, à rutura com o profano na linha do célebre imperativo que Gargântua estabelecera na Abadia de Theleme para os seus habitantes de elite: Fais ce que vous voudra, “Faz o que quiseres”. Com a certeza de que cada um apenas dirá: “Joguemos” e todos jogam; ou “Brinquemos” e todos brincam (Rabelais, 1987, p. 215).
A Terra da Brincadeira insere-se, assim, mais naquelas utopias que, ao contrário das utopias minuciosas, quase que dispensam as instituições (Ruyer, 1988:76) ou, no mínimo, faz dos jogos, dos divertimentos e das brincadeiras as próprias instituições utópicas. Na verdade, o utopista é “institucionalista”, no sentido em que ele faz da instituição uma causa e não um efeito, ele crê nelas e sacrifica-lhes a natureza humana: ele esforça-se por adaptar o homem às instituições e não as instituições ao homem (Ruyer, 1988, p. 79). A Terra da Brincadeira, uma terra que “não se parecia com nenhuma outra terra do mundo” (Collodi, 2004, p. 155), era, assim, uma grande e imensa ludoteca, uma brincolândia só habitada por miúdos entre os 8 e os 14 anos alegres, barulhentos:
Grupos de garotos por toda a parte: uns jogavam às pedrinhas, outros à malha e outros à bola; alguns andavam de bicicleta e outros num cavalinho de madeira; havia quem jogasse à cabra-cega e também a apanha, enquanto outros, vestidos de palhaços, comiam fogo; alguns representavam, outros cantavam e outros davam saltos mortais e outros ainda divertiam-se a andar com as mãos no chão e as pernas para o ar; enquanto uns jogavam ao arco, outros passeavam vestidos de generais com um elmo de lata e uma espada de papelão; ria-se, gritava-se, chamava-se, batia-se palmas, assobiava-se, imitava-se o cacarejar das galinhas quando acabam de pôr o ovo (2004, p. 155-156).
No meio de tantos divertimentos e de tantos folguedos, e à medida que o tempo voava, os dois amigos mergulharam num eterno presente lúdico (um tempo sagrado, diria Mircea Eliade). Numa espécie de espaço sagrado os dois amigos como que renasciam para uma nova existência que eles iriam viver num estado de plenitude: chegar a utopia é “renascer” para uma nova vida, é iniciar uma vida nova, tal como o dia renasce. Assim, Pinóquio, Palito e todos os rapazes viajantes para utopia “de manhã ao alvorecer chegaram felizes à Terra da Brincadeira” (Collodi, 2004, p. 155) e aí se sentem no seu habitat natural: “Mal acabaram de pôr o pé na cidade meteram-se logo no meio da balbúrdia, e em poucos minutos, como é fácil de imaginar, tornaram-se amigos de todos. Ninguém podia estar mais feliz e contente do que eles” (p. 156). Era a felicidade total: “Entre contínuos folguedos e divertimentos vários, as horas, os dias e as semanas passavam sem se dar por isso” (p. 156). E, assim, durante cinco meses foi “aquela maravilha de brincarem e se divertirem os dias inteiros, sem verem à sua frente nem um livro, nem uma escola” (p. 157), nem o professor, nem o pai, nem a mãe, nem qualquer um que pusesse entraves ao contínuo folgar e à felicidade total.
Neste quadro lúdico, a brincadeira assumia um fim em si mesma, desfazendo a realidade escolar com tudo aquilo que a mesma acarretava de obrigação, de perda de tempo de constrangimento, de sacrifício, de sofrimento, de cumprimento das normas: “viva a bincadera!”, “acabaram-se as xecolas”, “abaixo arinte mética” lia-se nas paredes das casas (p. 156). Este ambiente frenético (algazarra, agitação e risada) e pleno de alegria no qual vivia toda esta sociedade infantil era animado por uma das categorias fundamentais do jogo que Roger Caillois designou de “ilinx”, nome grego para o turbilhão das águas do qual deriva precisamente, na mesma língua, o designativo de vertigem (ilingos):
Um último tipo de jogos associa aqueles que assentam na busca da vertigem e que consistem numa tentativa de destruir, por um instante, a estabilidade da percepção e infligir à consciência lúcida uma espécie de voluptuoso pânico. Em todos os casos, trata-se de atingir uma espécie de espasmo, de transe ou de estonteamento que desvanece a realidade com uma imensa brusquidão (Caillois, 1990, p. 43).
Neste quadro de recreio sem professor ou vigilante, autêntica “república de crianças”, “o pandemónio, o chilreio e a algazarra endiabrada” era de tal ordem “que era preciso meter algodão nos ouvidos para não ficar surdo” (Collodi, 2004, p. 156). A maior parte das brincadeiras, especialmente aquelas que implicam movimentos mais ou mesmos acelerados, exprimem normalmente um desejo pela desordem e pela destruição; bem como a atração pela velocidade e pelas acrobacias que suscitam um prazer que inebria voluptuosamente quer a criança, quer o adulto deixando-as num estado eufórico.
- O lado negro da Terra da Brincadeira
Não duraria sempre a felicidade da Terra da Brincadeira. Ela estava organizada de tal modo que o único beneficiário era o homenzinho da carruagem, aquele “mostrengo horrível que tinha um ar tão doce e suave”, corria o mundo a recolher, com promessas e denguices, os rapazes mandriões que detestavam os livros e a escola, levava-os para a Terra da Brincadeira para os transformar em burrinhos, apoderar-se deles e ir vendê-los pelas feiras e mercados. “E, assim, em poucos anos ganhara muito dinheiro e tornara-se milionário” (Collodi, 2004, p. 170). Pinóquio é que não sabia que “o sofisma das utopias é aplicar a um puro sistema de instituições o que não é verdadeiro senão na ordem moral: Todas as virtudes parecem virtudes-chave, porque na realidade elas se requerem mutuamente. Mas não há Instituição-Sésamo perante a qual todas as dificuldades em todos os domínios se esvaiam” (Ruyer, 1988, p. 70).
Quem sabe que a Terra da Brincadeira não reúne em si todas as virtudes é o “burrinho” que puxa a carruagem transportadora dos viajantes para a Terra da Brincadeira. Primeiro, atira para o ar Pinóquio, o “pobre boneco”, e, depois, para o meio da estrada e, finalmente, vai-o avisando: “- Pobre pateta, quiseste fazer o que te apeteceu mas hás-de arrepender-te” (Collodi, 2004, p. 154); “- Mete isto na cabeça, palerma! Os miúdos que deixam de estudar e voltam as costas aos livros, às escolas e aos professores para se entregarem completamente à brincadeira e ao divertimento, acabam sempre por ter um triste fim (p. 155).
Ao fim de cinco meses mergulhado naquele dolce fare niente (o princípio de prazer freudiano), tornam-se visíveis os frutos que recolhem “os miúdos que deixam de estudar e voltam costas aos livros, às escolas e aos professores para se entregarem completamente à brincadeira e ao divertimento” (pp. 154-155). Como advertia o burrinho, esperava-os um “triste fim”, não simplesmente o de Midas que recebeu orelhas de burro, mas também o de passar a ser absolutamente burro de corpo inteiro. Sabendo que o asno simboliza a ignorância, a obscuridade (tendências satânicas) e o elemento instintivo do homem (uma vida centrada nos planos terrestre e sensual), a sedução sensível oposta à harmonia do espírito (Chevalier & Gheerbrant, 1994, p. 35-37), Collodi sugere assim, pela metáfora asinina, que abandonar a escola e os livros é atitude pouco inteligente, teimosia estúpida, ignorância pura e implica dar-se um destino muito humilde, de trabalho pesado, de grande resistência física, “uma vida muito dura e de maus tratos” (2004, p. 170).
A metamorfose de Pinóquio em burro serviu os desígnios do “homenzinho”, do “mostrengo horrível” que o levara para a Terra da Brincadeira. Ávido de lucro, não tardou em vendê-lo no mercado a um diretor de uma companhia de palhaços e este, por sua vez, vendeu-o a um comprador que quis fazer da sua “pele bem dura” um tambor para a banda musical da sua terra (p. 167-179), mas que, finalmente, “em vez de um burrinho morto” acaba por ver “aparecer à tona de água um boneco vivo que se contorcia como uma enguia” (p. 181). Neste contexto, Pinóquio explica a sua história ao último comprador:
Pois então fique sabendo que eu era um boneco de madeira como sou agora, mas estava mais coisa menos coisa para me transformar num rapaz como há tantos por aí; só que, por causa da minha pouca vontade de estudar e por dar ouvidos às más companhias, fugi de casa… e um belo dia, ao acordar, tinha-me tornado um burro com umas grandes orelhas… e uma grande cauda (p. 182).
A transformação de Pinóquio em asno parece simbolizar que a “Idade de Ouro”, um tempo eterno do dolce far niente tão prometido pela Terra da Brincadeira, abre para um mundo radicalmente diferente daquele anteriormente vivido por Pinóquio: “Compete, então, à utopia projectar a imaginação para fora do real, para um algures que é também um nenhures. (…) A utopia é um exercício da imaginação para pensar um ‘modo diferente de ser’ do social” (Ricoeur, s. d., p. 381). Mas este mundo outro dourado e colorido pode, na verdade, também esconder o seu inverso e transformar-se num pesadelo trágico, a quem à ilusão vã se entrega e por ela é devorado. Por outras palavras, na Terra da Brincadeira a um tempo de felicidade, necessariamente breve, sucedeu-se um tempo de dor, de desilusão e de desespero crescente: “Deixo à vossa imaginação o desgosto, a vergonha e o desespero do infeliz Pinóquio” diz o narrador nas Aventuras de Pinóquio face à “imagem [de Pinóquio] enfeitada com um magnífico par de orelhas de burro” (Collodi, 2004, p. 159). Por esta transformação, que interrompe abruptamente aquele tempo maravilhoso de brincadeiras diárias livre de livros, de escola e de professor, confrontamo-nos com lado mais negro da utopia que é precisamente a sua dimensão patológica (o utopismo) em que o sujeito deixa-se apanhar pela miragem do speculum e da ficção-simulacro, enfim de uma promessa de felicidade eterna que ela própria se transforma num desespero infernal: “Esta fobia do real, das suas diferenças e das suas mudanças, conduz o utopista a sonhar com uma felicidade controlada pela obrigação e isolado numa reclusão autística” (Wunenburger, 2002, p. 225; 1979, pp. 169-187). Este modo utópico simboliza não só uma regressão mas também uma “desconfiança relativamente a todas as formas de vida e de vitalidade” (2002, p. 227), o que implica já toda a tentativa de escapar às desordens do tempo e do espaço históricos, como é o caso da Terra da Brincadeira, com vista a preservar um ideal perfeccionista de difícil realização ou de difícil conservação (Araújo & Araújo, 2015)
Este lado negro da utopia, que Jean-Jacques Wunenburger designa por “uma sociedade sem sonhos nem razões (2002: 118-137), é o lado e o tempo das vítimas que, ao optarem ingenuamente pela promessa de um “paraíso na terra”, de uma “golden age” terrestre, acabam, mais tarde ou mais cedo, por desposar o infortúnio, ou seja, o próprio inferno, por pagar um preço ôntico e ético que compromete toda a sua existência futura, ainda que menos perfeita e menos livre. Do contentamento e do sorriso de Pinóquio, que durou cinco meses, passa-se para um Pinóquio vergado pela sua própria dor e por um choro desesperado: “Começou a chorar, a berrar, a bater com a cabeça na parede” (Collodi, 2004, p. 159).
A Terra da Brincadeira torna-se um sucedâneo do próprio inferno que digere as crianças que para ela acorrem na esperança de que a felicidade será sempre delas e se prolongará numa espécie de “presente eterno”, enfim uma ilusão que arrastará as crianças para grandes penas e sofrimentos, que os arrastará inexoravelmente para uma terra escura e lembra o episódio em que Pinóquio é devorado pelo terrível tubarão: “Para quem acreditava poder fugir ao comum destino [o da Escola por exemplo] existe um destino pior, o da velocidade de uma trituradora que do corpo e dos seus pensamentos até a memória destrói” (2004, p. 169). Estes pontos dedicados a uma fase da vida de Pinóquio são esclarecedores na desmontagem que Collodi faz acerca da possibilidade de uma vida utópica: o “bem viver” tão querido por Pinóquio acaba, no final de contas, por transformar-se num inferno simbolizado pela sua metamorfose em asno com todas as consequências que essa mesma transformação implicou no presente e no futuro da sua vida.
- Morte iniciática e metamorfose em criança de verdade
Ao evidenciar o dinamismo de pedaço de pau que Mestre António dá a Gepeto, Collodi acentua, por um lado, o caráter de natureza do boneco que este cria e, ao mesmo tempo, o “corte” com a natureza de origem (a árvore) para a emergência de uma “segunda natureza” identificada com o desenvolvimento moral do boneco, embora, num primeiro momento, o seu criador apenas pensasse em formar um fantoche (burattino, marioneta, títere) que faria justiça ao nome que recebeu (Pinocchio, de pino, pinho, madeira de pinheiro, e occhio, olho), mais do que à caraterística que mais ficou associada a esta personagem, isto é, o nariz que crescia todas as vezes que mentia, ele mesmo metáfora também da inconstância infantil.
Este bocado de madeira com vida, isto é, com a vitalidade que a natureza lhe dá, faz traquinices, chora e sempre promete que, a partir daí, vai “ser bonzinho”. No caso de Pinóquio, ele promete ir à escola, estudar, ser bom aluno, aprender um ofício e ser o consolo e o amparo na velhice de Gepeto, aquele que lhe deu a forma física de humano. Mas é mais forte o fascínio exercido pela Terra da Brincadeira, a quem o asno, ou o burro, como símbolo das trevas (Ferrão, 2000), faz ressaltar o sentido negativo da utopia que ela representa (fazendo dela uma espécie de distopia patológica e polimórfica), mas também o lado abandonado, fragilizado da criança. Pinóquio, que julgava abraçar para sempre o maravilhoso e o prazer, acabou, pela sua transformação em asno, por desposar o infortúnio: “Para quem acreditava poder fugir ao comum destino, existe um destino pior” (Petri, 2004, p. 169), o destino de ficar prisioneiro da sua sombra (sob forma de asno) sentindo-se ainda humano.
Ser transformado em asno implica ser dominado pela condição animal, ter caído sob o impulso de um complexo específico que impõe um comportamento bizarro, porque dissociado, na medida em que Pinóquio sente-se como um ser humano sem contudo poder falar. Ele apenas zurra:
– Ó minha Fadazinha! Ó minha Fadazinha! Mas, em vez destas palavras, saiu-lhe da garganta um zurro tão sonoro e prolongado que fez rir todos os espetadores e, principalmente, todos os miúdos que estavam no circo. (…) os olhos encheram-se-lhe de lágrimas e começou a chorar copiosamente (Collodi, 2004, p. 177-178).
Pinóquio estava, sem disso ter consciência, vivendo o drama de Lúcio-Apuleio que na pele de um asno ou jumento ainda se sente como um ser humano: “Ele é tratado como um animal, mas, internamente, no seu mundo subjetivo, ele não o é. De modo simbólico, isso significa que externamente ele vive num mundo inferior ao que sua personalidade interna assim o permitiria” (Franz, 2014, p. 91).
O destino de Pinóquio moldado pela trans-formação assume a dimensão de uma metamorfose iniciática de carácter psico-ontológico. Este tipo de metamorfose simboliza a maturação (a regeneração) de Pinóquio na sua via de humanização, ou seja, tornar-se um rapaz “como deve ser”. Porém, para que este destino fosse cumprido, Pinóquio teve que “morrer” para se tornar um “menino de verdade” e aqui nos encontramos com o simbolismo da morte iniciática. Este tipo de simbolismo significa que a morte iniciática visa abolir a existência histórica para reintegrar a situação primordial num in illo tempore: “A morte iniciática é portanto um recomeço, ela não é nunca um fim” (Eliade, 1993, p. 274). A morte iniciática equivale a um novo nascimento. Este nascimento significa que, após ter passado pelo ventre do monstro marinho (tubarão ou baleia pouco importa), o noviço experiencia, como já referimos, como que um re-nascimento, como um nascer uma segunda vez:
Convém nunca esquecer que a morte iniciática significa simultaneamente o fim do homem ‘natural’, não cultural – e a passagem a uma nova modalidade de existência. A de um ser ‘nascido para o espírito’, ou seja que não vive unicamente numa realidade ‘imediata’. A morte iniciática faz, portanto, parte integrante do processo místico pelo qual um se torna outro, modelado a partir do modelo revelado pelos deuses ou pelos antepassados míticos. O que equivale a dizer que só se torna homem verdadeiro na medida em que se deixa de ser um homem ‘natural’ e se assemelha a um Ser sobre-humano (Eliade, 2001, p. 276).
Descobrindo-se como burro, Pinóquio descobre que a “segunda natureza” que desenvolvera o conduzira à animalidade. O “burrinho” que o transportara para a Terra da Brincadeira bem confessara e advertira: “- Eu aprendi isso à minha custa… e posso dizer-to. Chegará o dia em que tu também hás de chorar, como eu hoje choro… mas nessa altura já será tarde” (Collodi, 2004, p. 155). Mas esse é o destino e, por isso, de nada valeria chorar: “Está escrito nos decretos da sabedoria que todos os miúdos mandriões que aborrecem os livros, as escolas e os professores e passam os dias na brincadeira e em jogos e em divertimentos, mais cedo ou mais tarde acabam por se transformar em burrinhos”, como lhe diz a Marmotinha (p. 160 e 162). Na economia da narrativa de Collodi, a vida na Terra da Brincadeira é um lento processo de animalização e, assim, passados cinco meses, Pinóquio e Palito descobrem-se fisicamente transformados em autênticos “burros” e, “vencidos pela vergonha e pelo desgosto, começaram a chorar e lamentar-se do seu destino” (2004, p. 166), mas agora com zurros asininos em vez de gemidos e lamentos humanos.
A redução ao estado animal e a autodescoberta como “burro” comporta vergonha e desgosto, choro e lamento pelo destino, mas não é ainda o ponto de viragem da vida de Pinóquio. Ele apenas sai da vida de burro amestrado quando, mais tarde, fica coxo e o novo dono, querendo fazer um tambor para a banda da sua terra com pele de burro morto, atira Pinóquio para a água para o afogar.
É o banho de água (símbolo de vida, fecundidade, transformação, purificação) que o faz perder toda a capa de asno e voltar à sua condição de “boneco vivo” de madeira. E é, depois, no mar, o lugar para onde foge do novo dono, que terá o seu “segundo nascimento”, o seu renascimento para uma vida nova, a sua transformação em “rapaz bem-comportado”. No mar é devorado por um Tubarão e no estômago deste encontra Gepeto e toma a iniciativa da fuga, comanda as operações, transporta o pai às cavalitas e chega à margem ao amanhecer, início de um novo dia e de uma nova vida. Passa então a dedicar-se ao trabalho e ainda encontra energias para exercitar a leitura e a escrita, instrumentos de cultura: “E ao serão exercitava-se a ler e a escrever” (2004, p. 204).
Neste aspeto, Collodi aproxima-se de Voltaire e faz de Pinóquio um novo Cândido, o inocente e simples que, depois de percorrer lugares que tinham sido utopias (as Reduções dos Jesuítas no Paraguai, a região do Eldorado) que se tornaram distópicas, aceita como válido o pressuposto do hortelão turco de que “o trabalho afasta de nós três calamidades: o aborrecimento, o vício e a pobreza” e conclui que “é preciso cultivar a horta”, até porque, como filosofa o seu mentor, “quando o homem foi posto no Paraíso mandaram-no trabalhar; o que prova não ser o homem um ente criado para o repouso” (Voltaire, s/d, p. 153 e 154).
É, pois, este “segundo nascimento” que lhe permite deixar que o seu bom coração se revele, perceber que “já não era um boneco de madeira e que se transformara num rapaz como todos os outros” (2004, p. 206), bem como melhorar as condições materiais de vida, as próprias e as do pai.
A metamorfose, ou trans-formação ocorrida depois de uma “morte iniciática”, parece-nos ser a condição de Pinóquio afirmar-se como “soi-même comme un autre” (Ricoeur, 1990), ainda que para tal necessite de um Grilo-Falante, de uma Fada, de uma Raposa, de um Gato enquanto símbolos necessários ao seu processo de humanização e de maturação que, na terminologia de Carl Gustav Jung, corresponderia ao Processo de Individuação (Grassi, 1981). Nesta linha, percebe-se que Pinóquio, mesmo sem disso ter completa consciência, aspirava à aventura interior de trans-formar-se em rapazinho mesmo confundindo esse desejo interior com as suas muito movimentadas aventuras lúdicas.
- A dureza do encontro com a cultura à margem da escola
Pinóquio resolve partir para a Terra da Brincadeira porque, sempre movido por uma curiosidade inesgotável, sente-se inexoravelmente atraído pelo abismo, pelo desconhecido, pelo “frisson” da aventura e da felicidade que a brincadeira sem limites e sem tempo promete. Psicologicamente esta atitude significa que Pinóquio vive no mundo das emoções e dos instintos, de que a sua transformação em asno é uma prova. Ao recusar ouvir a voz da “razão”, personificada por Gepeto, pelo Grilo-Falante e, especialmente, pela Fada Azul-turquesa, o boneco de madeira apenas queria viver um presente eterno de brincadeira e do êxtase que esta lhe provocava. Pela diversão na Terra da Brincadeira (reino da utopia, ou seja, do não-lugar feliz) Pinóquio esquecia a sua condição de marionete, bem como o seu desejo de transformação em humano.
Mas aquilo que ele julgava ser uma libertação interior na despreocupação, um sucesso cor-de-rosa acaba por ser o rude golpe da sua conversão em asno. Apesar do plano de Gepeto ser esculpir um boneco de madeira para uso lúdico, o facto é que Pinóquio, desde o seu “nascimento”, ainda que sem disso ter consciência, estava “talhado”, não para ser uma simples e vulgar marionete nas mãos do seu construtor-fazedor (Collodi, 2004, p. 13-21), mas antes para ser um “herói” que almejava viver entre os homens como um rapaz e que o conseguiu graças às suas boas ações e à proteção da Fada azul-turquesa:
Ganha juízo para o futuro e serás feliz. Neste ponto o sonho terminou, e Pinóquio acordou de olhos arregalados. Agora imaginem qual não foi o seu espanto quando, ao acordar, percebeu que já não era um boneco de madeira e que se transformara num rapaz como todos os outros. […] Depois foi-se ver ao espelho, e pareceu-lhe que era outro. Já não viu refletida a imagem habitual do boneco de madeira, mas sim a imagem viva e inteligente de um belo rapazinho de cabelos castanhos e olhos azuis, com um ar de Páscoa alegre e festiva (2004, p. 206-207).
Que cómico que eu era, quando era boneco! E que contente estou agora por me ter transformado num rapazinho como deve ser! (2004, p. 208).
E como tal foi possível? Na impossibilidade de eternizar-se na Terra da Brincadeira e consequentemente metamorfoseado em asno, Pinóquio sofreu uma espécie de choque que o levou a ultrapassar a sua tendência para a autocomiseração e resignação, especialmente no episódio em que ele se salva a si e a seu pai de morrerem na barriga do Tubarão Átila que constituía uma autêntica prisão. Trata-se de uma maior consciencialização que, do ponto de vista de Collodi, significava que ele se encontrava cada vez mais “pronto” para se integrar na sociedade, abdicando de desejos egoístas e sacrificando o seu potencial individualista e a sua liberdade entendida como caprichos em nome da responsabilização e da socialização. Assistimos, deste modo, a uma reconciliação entre o indivíduo e a sociedade, ou seja, ao encontro da “normalidade” que poderia ser “fabricada” pela Escola que ele pouco frequentara e logo abandonara.
O final feliz da História de um Boneco mostra que a perspetiva dominante da obra não é a do embrutecimento de quem abandona a escola, mas a capacidade que os seres humanos têm de se dar um destino, parecendo antecipar, de certo modo, a perspetiva de que a existência antecede a essência: “o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo, e (…) só depois se define” (Sartre, s/d, p. 216).
Na verdade, independentemente de Gepeto ter criado o boneco segundo um determinado modelo mental e de este ter a natureza da madeira (fisicamente, mas também simbolicamente, por o homem ser uma árvore invertida), é Pinóquio que traça o seu destino e se torna responsável por si próprio, por si e pelo pai. A interpretação de Araújo e Araújo, (2012, p. 52) é, contudo, a de que a narrativa de Carlo Collodi se enxerta sobretudo, na perspetiva moderna de Pico della Mirandola de que o homem é “um grande milagre e um ser animado, sem dúvida digno de ser admirado”, porquanto, colocado no meio do mundo, árbitro e soberano artífice de si mesmo, pode plasmar-se e dar-se a forma que escolher para si: “Poderás degenerar até aos seres que são as bestas, poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo” (1989, p. 53).
Com efeito, foi por um processo de experienciação pessoal com momentos de gozo e momentos de dor que Pinóquio transitou do estado de natureza ao estado de cultura, tendo contribuído para esta transição as vozes de Gepeto, do grilo falante, da fada madrinha e do professor, que, associadas às situações experienciadas de Pinóquio, acabam por contribuir para a consciencialização da importância da escola enquanto instituição formal para a alfabetização generalizada das crianças. Por outras palavras, Pinóquio faz a transição do estado de natureza para o estado de cultura à margem da escola porque não foi capaz de manter o entusiasmo e o interesse inicialmente manifestados e decidiu alongar o estado de natureza. Ao adiar o estado de natureza, não agarrou a “oportunidade” de fazer a transição para o estado de cultura através da escola, enquanto instância de socialização privilegiada e atualmente tornada “maquinaria de governo da infância” e, por isso, lugar de passagem obrigatória para todos, nomeadamente para os filhos das classes populares (Alvarez-Uria & Varela, 1991, p. 14).
Mas é sempre tempo para aceder aos instrumentos de cultura que a escola faculta. E, por isso, Pinóquio “renascido” exercita-se agora na leitura e na escrita. Contudo esta sua exercitação não deixa de ser uma “oportunidade de segunda” (Araújo, 2015). É uma oportunidade de segunda, porque se processa para além da idade e do tempo socialmente estabelecidos, mas também porque se faz com instrumentos de qualidade inferior: a leitura assenta em material usado (em segunda mão) e truncado porque desgastado pelo tempo e pelo uso de outros – ao livro em que praticava a leitura faltavam o frontispício e o índice – e a escrita processa-se com material rudimentar – um pauzinho afiado a servir de caneta e sumo de amoras e cerejas a servir de tinta num frasco que serve de tinteiro (Collodi, 2004, p. 204).
À economia da narrativa de Collodi subjaz, pois, a ideia de que a passagem do estado de natureza para o estado de cultura pode fazer-se à margem da escola mas que, sem esta, é bem mais difícil aceder aos instrumentos de cultura e sem a socialização escolar é deficiente a preparação para as funções sociais que a economia geral do sistema determina (Clausse, 1976, p. 292). Subjaz ainda a ideia de que são insuficientes os “avisos” morais do professor de Pinóquio para evitar que este abandone a escola. Mas, ao contrário do que uma leitura superficial poderá indicar, os fatores que o explicam não são apenas de natureza individual, também são de natureza organizacional e pedagógica. A sua identificação requer reorientação da ação educativa com base numa pedagogia ativa que dê aso à “necessidade orgânica de usar o potencial de vida [da criança] numa atividade ao mesmo tempo individual e social” que a interessará profundamente (Freinet, 1974, p. 191). As pedagogias ativas assentam na ideia de que o aluno é sujeito da sua aprendizagem e comportam uma organização da aula que favorece a interação, a experimentação, a descoberta.
- Conclusão
As Aventuras de Pinóquio dão conta do percurso evolutivo da formação da personagem simpática criada por Gepeto a partir de um pedaço de madeira com vida.
Gepeto pretende fazer desse pedaço de madeira um boneco e dá-lhe a forma física humana, vindo a descobrir que talhar o boneco não é dar-lhe personalidade moral e que a criação do ser humano é um processo prolongado no tempo. Depois de “criado”, o boneco revela-se bem travesso e insubmisso. Se não fora fácil dar-lhe forma física, difícil é modelá-lo sob o ponto de vista moral. O primeiro segredo de Pinóquio é, pois, que ele, na sua origem, é um ser animado, um ser com anima, o arquétipo da própria vida (Jung). Ele é um ser com vida própria e a sua vivacidade carece de ação e esta não se encontra na compulsividade da escola ou do trabalho.
Mas o maior segredo está na aprendizagem de Pinóquio, no seu saber de experiência feito. A vivacidade do boneco expressa-se em travessuras e atos de insubmissão e desobediência, de arrependimento e de promessa de mudança, de recaída e de reerguida, até que se “farta” de ser sempre um boneco, assume o destino que se quer dar e renasce para uma nova vida, assume-se como um novo eu (Meirieu, 1996, p. 31) e torna-se um menino de verdade (Araújo, Araújo & Ribeiro, 2012).
Por isso, a História de um Boneco, subtítulo mais que justificado para As Aventuras de Pinóquio, vem a ser um romance de formação, porque narra o percurso evolutivo da formação de um ser a quem, depois de lhe ser dada a forma física humana, falta a modelação moral para se “transformar num rapaz como os outros” (Collodi, 2004, p. 206) e essa modelação passa por um processo que evolui da heteronomia para a autonomia e nele se joga a tensão entre natureza e cultura.
É neste processo prolongado e neste complexo jogo que se realiza a ação da criança e o terceiro segredo da infância em tempos de universalização da escola. Pinóquio dá corpo à ideia de que viver é agir e as suas Aventuras colocam em confronto dois modos de ação, a brincadeira e o trabalho, que Carlo Collodi apresenta em contraposição, colocando a primeira do lado da meninice e da irresponsabilidade e o segundo do lado da responsabilidade e mais próximo da adultez que a escola ajuda a antecipar, precisamente num tempo em que muitos dos filhos dos homens “fugiam à escola” porque não tinham tempo para ser “meninos”, como veio a realçar Soeiro Pereira Gomes, em 1941, na dedicatória de Esteiros, a história de cinco crianças que trabalhavam em vez de ir à escola. Mas também, como Pinóquio, porque esta não se lhes afigurava como suficientemente atraente face às maravilhas da Terra da Brincadeira, o lugar secreto do imaginário infantil.
Sabendo que a história de Pinóquio serviu de pretexto a Carlo Collodi para ilustrar as tensões ideológicas, escolares e morais de uma Itália de oitocentos em transição de sociedade agrícola, pré-industrial e tradicional para o modelo de sociedade industrial e urbana com as contradições e sofrimentos que tal mudança implica, o presente estudo, recorrendo aos estudo sobre o fenómeno utópico e à hermenêutica simbólica, enfatiza como, apesar de tudo, permanecem mistérios da infância com seus segredos e lugares secretos de que a ação pedagógica não pode alhear-se.
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