Maria do Céu Roldão

Faculdade de Educação e Psicologia- Universidade Católica Portuguesa
CEDH- Centro de Estudos do Desenvolvimento Humano

Resumo

Sob inspiração da temática “distância em educação”, este artigo situa-se na reflexão analítica sobre alguns dos eixos de distância que marcam o campo central da ação da educação em contexto escolar – o currículo – contribuindo de forma significativa para o insucesso da escola no desempenho cabal do seu mandato de promotora e garante das aprendizagens curriculares. Esses eixos de análise são os seguintes: 1.A distância da normatividade à decisão – ou os défices do poder profissional; 2. A distância da discursividade à apropriação – ou os nomes e as coisas; 3. A distância da intenção à ação – ou a crença na bondade dos princípios; 4. As complexidades da teoria curricular – ou fatores de distanciamento entre o quadro de análise e o seu objeto.
Palavras-chave: Currículo; desenvolvimento curricular; decisão curricular; profissionalidade docente

 

Abstract

Inspired by the thematic “distances in education”, this article intends to offfer a reflective analysis focused on some of the main “distance spaces”, or gaps, that affect the central core of school education – the curriculum – , contributing significantly to the failure of schools in fully attaining their mandate as responsible and guarantee of the curriculum, expressed in expected learning processes and outcomes. The “distance spaces” that will be discussed are the following: 1. Distance from norms to decision –or the deficits of professional power of teachers; 2. Distance from discourse to appropriation – or the names and the things; 3.Distance from intention to action – or the belief in the power of principles; 4. Complexities of curriculum theory – or factors of distance between frames of analysis and their object.
Keywords: curriculum; curriculum development; curriculum decisision-making; teacers professionalism.

 

A questão das distâncias corporiza uma boa metáfora das tensões no campo do currículo, quer na sua dimensão operativa, quer no seu quadro de teorização hoje incorporado na designação mais recente de Estudos Curriculares (Pacheco, 2004) ou na mais clássica Teoria Curricular associada à própria Teoria da Educação, uma e outra carregando diversas ambiguidades.

Para efeitos de organização deste texto, abordaremos em primeiro lugar as dimensões práxicas, referentes às secções 1, 2 e 3. A secção 4 procura situar o campo do currículo em perspetiva teorizadora e epistemológica.

 

1.A distância da normatividade à decisão – ou os défices do poder profissional

Uma das marcas significativas da cultura das organizações educativas – das quais nesta análise se elegeu como objeto preferencial a escola – é a sua estruturação normativa, particularmente pesada quando se trata de sistemas com níveis elevados de centralização administrativa, fortemente enraizados na cultura das organizações, como é o caso português.

Nestes sistemas, historicamente de matriz napoleónica, dos três níveis em que se teoriza o plano da decisão curricular – macro, meso e micro (Gaspar e Roldão, 2007)- o nível forte da decisão é o nível macro. Com escassa tradição histórica de participação das comunidades nas decisões que à educação respeitam, fruto de séculos de analfabetismo articulado com pequenas elites instruídas, mantido para além dos limites da modernidade, estes sistemas educativos estruturam os seus currículos em torno das emanações do poder central, que por sua vez, se torna prolífico na produção legislativa, normativa e prescritiva. A escola – o nível meso da decisão curricular- configurou a sua cultura organizacional neste padrão: modo distributivo a partir do centro e modo executante dos atores face à decisão do centro, configurando uma educação que se aproxima do que Paulo Freire designou por educação bancária (Freire, 1983).

Permanece certamente visível, mesmo nas prescrições curriculares centralistas, o impacto social de tendências políticas e necessidades socio-económicas que plasma a construção social do currículo (Goodson , 1997) e justifica a sua designação como “arena“ (Apple, 1997) – metáfora de um espaço de tensões entre poderes existentes e dominantes, bem como de construção ou manutenção de novos campos de poder. No tempo atual, é por exemplo muito clara a influência dos poderes dominantes em sociedades em que o domínio tecnológico científico e a globalização se acentuam no plano político e económico., no quase endeusamento curricular dos últimos dez anos nas áreas da Matemática e da Língua Materna (seguidos da Língua Inglesa, crescentemente), em detrimento de todo o restante cânon curricular, nomeadamente no domínio da cultura, história, ciência e artes em geral. Configura-se assim uma educação de caráter sobretudo instrumental pra o seu nível básico, comum a todos os cidadãos, de foco estreito, que remete para apenas um grupo mais selecionado dos públicos, em níveis para além da educação comum, o acesso aos saberes valiosos do património cultural comum.

De modo idêntico, por força de processos longos e profundos de socialização, interiorizados na cultura profissional docente, os atores do nível micro do desenvolvimento do currículo e da decisão sobre ele – a aula ou situação de ensino – incorporam a perspetiva de execução normativa e do “cumprimento de” (currículo – lido como programas ou mesmo como manuais- matérias, normas, tempos, etc). Tal défice de decisão curricular no plano micro, por parte dos professores na sua prática de ensino quotidiana, implica que assim se afastem cada dia um pouco mais da sua afirmação como profissionais plenos, reforçando antes um empobrecedor estatuto funcionário. (Rodrigues, 1997; Roldão, 1989; 2010).

Neste magma cultural que constitui a vida dos sistemas educativos, a distância entre o que se faz no ensino real e o que noutra sede algum outro decide – a prescrição curricular cada vez mais detalhada e desdobrada – é, e continuará a ser, enorme, se não houver nesse plano intervenção estratégica. Os manuais e outros materiais industrialmente produzidos, que constituem uma “indústria pesada” na educação, tendem a ser cada vez mais “à prova de professor”, seguindo a expressão norte-americana vulgarizada nos anos 60-70 do século passado, marcados pela sua busca da eficácia educativa – teachers’proof materials. Este tipo de opções na criação de manuais, cada vez mais descritivos do caminho uniforme da aula, com todos os requisitos formais e veiculando uma única via didática para cada tema ou unidade, criam, pelo seu absurdo e rígido dirigismo, mas enorme “facilitação” do planeamento e preparação que vem apresentado em modo “pronto-a-vestir”, e pelo uso seguidista com que os professores as acolhem, uma forma de fortíssima demissão profissional.

No locus central da decisão curricular está um olhar global, necessariamente abstrato e não contextual, adequado à expressão das linhas comuns do currículo a traduzir em aprendizagens para todos, com suas diferenças e em seus contextos. Este caminho do currículo prescrito ao currículo real implica a mediação decisora dos níveis meso e micro, as escolas e professores, protagonistas da operacionalização contextualizada da prescrição comum, onde se joga o famigerado e sempre inalcançado sucesso, mediante vias estratégicas, inteligentes e diferenciadas de ensinar, enquanto ato deliberado e fundamentado de promoção da aprendizagem curricular (Zabalza, 1992; Gaspar e Roldão, 2007; Roldão, 2014; Sousa, 2010).

Da articulação harmoniosa destes três níveis de decisão curricular – que no presente é extremamente débil – poderá resultar a redução desta perniciosa distância entre decisores e operacionalizadores, substituindo uma racionalidade técnica aplicativa, por uma racionalidade prática e construtiva (Kemmis, 1993; Pacheco, 2005) que situa o poder de avaliar as situações e tomar as decisões estratégicas sobre o ensino na mão de profissionais que disso sejam efetivamente especialistas – os professores – divorciados por fim da lógica funcionária que os enreda e limita.

 

2. A distância da discursividade à apropriação – ou os nomes e as coisas

Gaston Bachelard, na sua obra “A Formação do Espírito Científico” (2005, versão original 1938), desconstrói o que designa como “obstáculos epistemológicos“ à produção de conhecimento científico, que, na sua análise, se constituem como amarras que ancoram pensamento às lógicas do senso comum. Um desses obstáculos é, segundo Bachelard, o obstáculo verbal, que descreve como a tendência de tomar a palavra pelo seu real sentido, trocar o significado pelo significante, e legitimar essa nomeação como generalização válida, gerando um pernicioso efeito de “não análise” do que está a ser alvo de nomeação, impedindo assim a sua desconstrução concetual e a subsequente reconstrução apoiada em evidências científicas.

Transpondo este princípio analítico para a leitura das distâncias no plano curricular, que aqui nos ocupa, identifica-se em numerosas situações educativas que estruturam a vida das escolas e professores, o largo predomínio da discursividade retórica relativamente às práticas de ensino e às logicas de trabalho que, em muitos casos, engendra uma anestesia ou imobilidade face à ação, a sua escassa operacionalização, e ainda menor eficácia.

Assinalam-se assim dois grandes domínios de visibilidade desta vertente retórica da vida das escolas: o plano da decisão organizacional e o plano do trabalho dos professores em sala de aula.

No que se refere ao primeiro, o discurso patente nos documentos de gestão produzidos na escola, nomeadamente os seus Projetos Educativos, e, até 2012, Projetos Curriculares de escola e turma, os Planos de Atividades, as decisões ou recomendações de órgãos como o Conselho Pedagógico, Conselhos de Departamento ou Conselhos de Turma, patentes em muitíssimas análises de dados recolhidos em escolas, disponíveis em teses de mestrado e doutoramento (Vd repositórios da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa, do Instituto de Educação da Universidade do Minho, e do Departamento de Educação da Universidade de Aveiro), é abundante o número de referências a decisões norteadas para grandes princípios de autonomia, formação integral do aluno, diferenciação curricular ou pedagógica, entre muitos outros, que configuram outras tantas verbalizações retóricas que se assumem como legitimação dos mais variados tipos de soluções, num claro uso do nome em lugar do nomeado.

Consequentemente, o grau de operacionalização das ações, as estratégias ou decisões que viabilizem a sua concretização efetiva, é na generalidade muito frágil. Por força dessa fragilidade, as mesmas construções frásicas, quase inalteradas, podem ser lidas em documentos de escolas /agrupamentos diferentes, ou em períodos de vigência diversos do mesmo órgão da mesma escola. Outra dimensão sempre assinalada nos documentos internos das escolas respeita ao incentivo à partilha de práticas pelos professores, que no entanto não aparece operacionalizada e raramente é passada à prática, a não ser no modo informal não sistemático.

O mesmo processo de discursividade retórica se pode observar no que se refere à dimensão do trabalho docente: planificações, planos individuais de apoio a alunos, descrições de estratégias de ensino destinadas à melhoria das aprendizagens em conselhos de turma, em que, por vezes em anos sucessivos, se diagnosticam idênticas dificuldades. Por exemplo, falta de métodos de trabalho, ou dificuldades de expressão verbal, ou falta de concentração, repetidamente produzem enunciados genéricos acerca dos alunos, dirigidos, por exemplo, a “promover a diferenciação, apoiar os alunos nas suas dificuldades, respeitar o ritmo” , sem que se objetive em que ações tais desígnios se concretizarão. Outra saída muito frequente para os problemas de insucesso referidos é a sua patologização, atribuindo as dificuldades ao alegado “défice de atenção” do aluno ou outras descrições igualmente patologizantes, que legitimam a rápida remissão para apoio psicológico ou medicação. Comum é também que o discurso dominante, recolhido em documentos escolares e em testemunhos de professores recolhidos na investigação, remeta qualquer descrição de tipo diagnóstico para alegadas condições adversas do meio familiar e social, tratadas como se deterministas fossem, inalteráveis nos seus efeitos, sem tocar na forma como se desenrola e adequa ou não o ensino a tais situações – dimensão quase sempre omissa nesses documentos ou registos.

Ocorre assim uma submersão da vida da escola e dos professores na acumulação de discurso, que não raramente oculta as práticas, e em larga medida inviabiliza a sua análise e reorientação em modos construtivos – tal como na análise epistemológica de Bachelard face ao obstáculo verbal, gerando círculos viciosos de pura retórica.

Este fenómeno carece de análise que permita compreender a sua génese. Necessitando de um processo investigativo holístico que não está feito, pode contudo reconhecer-se a existência de duas dimensões que poderão contribuir para esta dramática distância entre o discurso e a ação: (1) uma delas prende-se com a normatividade fortíssima que marca o sistema de ensino em Portugal, fruto em larga medida do centralismo administrativo que o caracteriza e a que acima nos referimos a propósito da decisão curricular. Desse normativismo são exemplo os próprios decretos que regulam a vida e funcionamento das instituições e ainda as próprias prescrições curriculares que, em Portugal, se desenvolvem numa proliferação de conceitos e suas verbalizações que, justamente por serem veiculados aos professores e gestores de forma normativa, se convertem em dimensões a cumprir e não em conceitos a aprofundar. Encoraja-se assim uma apropriação discursiva, verbalista, dos modos de vida e trabalho na escola, que marca por sua vez a socialização dos professores na profissão.

Refiram-se, a título exemplificativo, os conceitos de autonomia, mudança, gestão flexível, projeto, diferenciação curricular, avaliação contínua, competência, articulação curricular, supervisão, entre outros que povoam o discurso educativo. Todos estes “termos” entraram na vida das escolas pela sua inclusão num ou em vários normativos, e não pela emergência da sua efetiva necessidade como conceitos a apropriar pelo coletivo para gerir a sua ação (Roldão, 2009: Sousa, 2010). A distância que ocorre entre o discurso e a ação tem largas raízes neste modo perverso de acesso aos conceitos como se fossem normas, induzido pela própria lógica do sistema.

Uma segunda via de possível explicação desta distância prende-se com a relação dos professores com os campos teóricos ligados à sua prática profissional e ao modo como a ele acedem ou não. Esta relação, iniciada a carreira e para além do contacto com o que os professores designam como “teoria” e que, na verdade, designa o conhecimento que sustenta a sua ação, tem uma presença débil na vida dos professores e escolas. A profissão é largamente vista como de tipo prático, rejeitando-se, na cultura dominante na classe docente a e na cultura organizacional da escola, o aporte teorizador a uma atividade eminentemente complexa como é o ensino.

Como desenvolvi noutro local, não considero

“muito produtiva a eterna discussão acerca do peso relativo da teoria e da prática no exercício da função de ensinar – e na respectiva formação. Na perspectiva em que nos colocamos neste texto, a função de ensinar é socioprática sem dúvida, mas o saber que requer é intrinsecamente teorizador, compósito e interpretativo. Por isso mesmo, o saber profissional tem de ser construído – e refiro-me à formação – assente no princípio da teorização, prévia e posterior, tutorizada e discutida, da acção profissional docente, sua e observada noutros. Prefiro, assim, em vez de prática docente, falar da acção de ensinar, enquanto acção inteligente, fundada num domínio seguro de um saber. Esse saber emerge dos vários saberes formais e do saber experiencial, que uns e outro se aprofundam e questionam. Torna-se saber profissional docente quando e se o professor o recria mediante um processo mobilizador e transformativo − em cada acto pedagógico, contextual, prático e singular. Nessa singularidade de cada situação o profissional tem de saber mobilizar todo o tipo de saber prévio que possui, transformando-o em fundamento do agir informado, que é o acto de ensinar enquanto construção de um processo de aprendizagem de outros e por outros – e, nesse sentido, arte e técnica, mas fundada em ciência (Roldão 2007. p.101).

Trata-se pois de romper com esta outra distância que situa o agir e o saber docente na qualificação de práticos, por isso avessos à teoria. Porque se assume como “prático”, como fazedor de atividades, o professor reduz a sua ação a uma racionalidade técnica empobrecida, de fácil inserção funcionária, já que outros pensam e ele executa. (Pacheco, 2005; Roldão, 2010). Demite-se assim da sua função básica de teorizar, analisar e reorientar a ação (Schön, 1987) no uso de um conhecimento profissional de natureza teorizadora e analítica. Escava-se assim um fosso entre a prática e a inteligência da prática, entre fazer e conceber e justificar o que se faz – distância porventura originadora de grande parte da desqualificação social da docência.

Ainda uma terceira via explicativa prende-se com a formação. A passagem mais frequente de conceitos (na verdade teóricos) processa-se através de situações de formação – para além da inicial, a pós graduada, e a formação contínua e em contexto.

O mais comum nestas situações, em que venho trabalhando há várias décadas, é a constatação de que, em mais de 85% das situações, não houve leituras anteriores na prática quotidiana dos professores em formação, para além da dos próprios manuais didáticos. A tentativa de pedir, numa aula ou sessão de formação contínua, uma leitura de algum autor esbarra na necessidade, rapidamente expressa de que seja bastante curta e de linguagem muito acessível. Tratando-se de uma classe massivamente qualificada com nível de licenciatura, e com percentagens já significativas de mestres e doutores no terreno, este aspeto não pode deixar de causar preocupação. Por outro lado, na investigação documenta-se que os professores pós graduados que regressam às suas escolas se deparam, quando tentam desenvolver alguma passagem ou discussão de conhecimento adquirido, com uma resistência consistente e por vezes dura, dos colegas e das escolas que não parecem atribuir uma grande valia ao input de novo conhecimento, alegadamente rejeitado como teórico.

Tais sinais constituem uma evidência desta barreira/distância discurso-ação, que contamina uma outra relação aqui levantada apenas lateralmente – a da prática com a teoria. Essa distância é porventura matricial relativamente a todas as outras e terá de ser analisada no plano da discussão do estatuto da profissão docente, dividido ente formatos de profissionalidade e constrangimentos e culturas de matriz funcionária ou semi-profissional (Giméno Sacristán, 1995).

 

3. A distância da intenção à ação – ou a crença na bondade dos princípios

João Barroso retoma em muitos dos seus textos mais recentes a discussão – que remete para vários dos seus textos anteriores, teorizadores da gestão e autonomia das escolas -do equívoco, muito corrente nas práticas da escola e dos professores, de acreditar no efeito transformador resultante da “bondade dos princípios” (Barroso, 2014). Assim, verifica-se uma dificuldade grande em separar a qualidade da ação da sinceridade das intenções – abundantemente expressas nos textos reguladores da vida da escola e da prática dos professores, bem como nos seus registos avaliativos informais – na efetiva consecução de resultados ou melhoria de processos. Pode ler-se com frequência que, por exemplo, para promover a diferenciação curricular, os professores de tal ou tal coletivo se esforçarão muito para conseguir melhorar, tal dimensão mas raramente esta afirmação, que se reporta ao bom princípio, vem descrita ou traduzida em ações concretas e seus resultados. Num relato oral que tive oportunidade de testemunhar de uma diretora muitíssimo responsável, ela narrava que, quando submetida a sua escola a uma avaliação externa, perante questões dos avaliadores relativas ao modo como os professores de um ciclo ensinavam, a diretora afirmou – e teria até razão – que eles desenvolviam maioritariamente práticas muito adequadas ao contexto dos alunos, ela sabia. Mas, perante o pedido de explicitar quais eram e como as conhecia, verificou, ela própria, que não possuía evidências, mas fazia decorrer da visão global dos princípios gerais que sabia serem adotados por aqueles seus professores – a bondade dos princípios –a confiança na sua passagem incontestada à prática. Esta auto-análise terá desencadeado na diretora em causa o reconhecimento da necessidade de aferir os princípios com as práticas, não porque fossem dissonantes, mas porque uns ocultavam as outras, empobrecendo a análise.

O próprio conceito de estratégia de ensino implica, na sua teorização curricular, a ideia de uma conceção estratégica que problematiza, analisa, orienta e reformula uma série de ações de ensino articuladas em torno de um fim – a consecução da aprendizagem curricular pretendida (Roldão, 2009). Contudo é frequente que os documentos estratégicos da escola, ou os planos de apoio educativo, ou as próprias planificações de aulas sejam descritas como emanações (que não se objetivam , dão-se como adquiridas) de bons princípios e intenções projetadas. Em situações reais de formação de que tenho participado, quando se pede, por exemplo, a construção de uma estratégia para lançar um plano de supervisão num grupo de professores, aparecem formulações do tipo Desenvolver um clima de respeito e diálogo – que, sendo importantíssimo, se situa todavia no campo dos princípios enquadradores mas não configura nenhuma estratégia.

Uma distância também inibidora de melhorias é, pois, esta assunção insustentada de que os bons princípios, as intenções expressas e partilhadas por um coletivo, trazem consigo de forma imanente as suas consequências na ação. Na verdade, no sistema português os bons princípios e as intencionalidades corretas são largamente dominantes no discurso oficial, em todos os planos do currículo e da educação. Mas escasseia a visibilidade analítica dos modos como tais princípios ou intencionalidades de facto orientam as ações, ou o que poderá ser feito no plano da ação estratégica para que venham a orientar. Evidencia-se pouco a consciência, indispensável a qualquer processo gestionário, de que a ação é complexa e se joga na multiplicidade de variáveis que marcam os contextos, quer coletivas quer pessoais, e que essa complexidade requer uma gestão estratégica e regulação constante das ações postas em marcha- para cumprir com os princípios em que se sustentam.

No plano micro, das ações de ensino, o termo estratégia é abundantemente convocado no dia-a-dia dos professores, Mas quando se procura debater com professores onde residiu a orientação estratégica – por exemplo, como se obteve maior participação de alunos na aula, de que forma se convocaram tarefas estimuladoras de concentração, como se procurou gerar articulação das tarefas com conceitos, ou com interesses prévios – verifica-se uma dificuldade persistente (Roldão 2009).

Outra vertente desta distância reside na genuína deceção que alguns professores expressam quando os alunos não respondem positivamente a determinadas estratégias suas tidas por boas. Prevalece a mágoa, mas raramente se faz a passagem para a análise – porquê? onde falhou ou teve sucesso? Porquê?. O argumento mais usado é, pelo contrário, a estranheza perante o facto de, perante um bom princípio pedagógico (por exemplo, gerar trabalho colaborativo) os alunos tenham respondido mal a um trabalho de grupo. Estas constatações são geradoras de desânimos. O que mais raramente se faz é desencadear um processo analítico do modo como a tarefa foi proposta, organizada e gerida pelo professor, para aqueles alunos concretos e face à finalidade visada. Pressupõe-se em geral que a proposta traduz um bom princípio e não se cuida de atender ao modo da sua construção e adequação num contexto concreto (Roldão, 2009).

 

4. As complexidades da teoria curricular – ou fatores de distanciamento entre o quadro de análise e o seu objeto.

Nas secções anteriores desta análise procurou-se consubstanciar um conjunto de distâncias que recorrentemente marcam a prática organizacional, curricular e docente. Assumindo a escola como uma instituição curricular e a profissão docente como exercício da deliberação curricular no contexto da escola, importa ainda situar o campo teórico que se debruça sobre as questões do currículo como uma estrutura teorizadora que também, porventura, institui um outro modo de distanciamento que se situa no campo epistemológico. A teoria curricular como campo de conhecimento no interior da área da Educação, tem sido atravessada por múltiplas tendências que se ancoram, em épocas diferentes, na racionalidade técnica, prática ou crítica. Da evolução destas tensões emerge mais recentemente um campo teórico designado em muitas sedes académicas como Estudos Curriculares (Pacheco, 2005).

No plano de análise que neste texto adotamos, é importante notar que esta multiplicidade de tendências teóricas que se agregam neste domínio, e sem subestimar a sua diversidade, têm contudo como linhas mais estruturantes ao longo do século XX duas visões que também elas estabelecem dois extremos, gerando uma distância de leituras no que respeita à discussão curricular: de um lado, a visão marcadamente tecnicista, herdeira do behaviourisnmo e das influentes conceptualizações de Ralph Tyler, assentes numa tecnicidade operacional estrita, que remeteram o entendimento do currículo e do desenvolvimento curricular para o terreno da pura técnica, instrumental para a proclamada eficácia; por outro, na esteira dos movimentos reconceptualistas afirma-se uma linha interpretativa suportada sobretudo pela sociologia do currículo (Apple, 1997; Popkewitz,1991) que privilegia a leitura macro do currículo enquanto expressão, e também construção, de poder e conflito de interesses e culturas em presença nas sociedades. (Gaspar e Roldão, 2007).

Por outro lado ainda, um outro foco de tensão atravessa o campo teórico do currículo, justamente em torno da natureza do conhecimento a privilegiar num tempo de massificação da educação. Michel Young, ele próprio um sociólogo do conhecimento que propôs nos anos 1970 uma rutura com o paradigma disciplinar clássico do currículo, em favor de abordagens integradoras de outros saberes ligados à experiência, tem nas duas últimas décadas revisto e revisitado este seu posicionamento, argumentando em favor da importância de preservar a centralidade curricular dos saberes instituídos nas disciplinas que, na sua leitura, corresponde ao que designa por powerful knowledge, que não deverá ser apenas privilégio de poucos, como tem sido o padrão clássico da educação escolar (“knowledge of the powerful”), mas não deverá tão pouco ser substituído por saberes experienciais que, na sua leitura, são de outra natureza, estão ligados ao senso comum e não competem á escola (Young, 2010).

A questão curricular que aqui convocamos não se centra nessa importante discussão em curso, geradora de grande controvérsia e confronto. Mas sim na simplificação que tem resultado da distância entre as duas linhas extremas que atravessaram as tendências dos Estudos Curriculares: de um lado, una visão estreita e tecnicista da construção e do desenvolvimento do currículo, que encoraja o papel apenas executante e técnico face a um currículo prescrito, e a consequente demissão de as escolas e professores se posicionarem como co-autores do currículo, autores do processo de ensino e gestores da promoção das aprendizagens curriculares necessárias aos alunos; na linha interpretativa crítica (Kemmis,1993), pelo contrário, situa-se a teorização do currículo ao nível da sua leitura em termos sociológicos, apela-se a uma meta-análise pertinente do conceito e práxis curricular, dimensão essencial para a deliberação curricular sustentada. Todavia, a tendência para opor estas duas leituras – em lugar de construir a sua complementaridade – vem empobrecendo a capacidade dos professores, sobretudo no plano da sua formação, na medida em que a necessária valorização do conhecimento teórico interpretativo do currículo, numa lógica de racionalidade crítica, por parte dos profissionais que com ele trabalham, é essencial na solidez do seu conhecimento profissional. Mas não pode nem deve por isso prescindir-se da competência, necessariamente técnica, relativa à construção dos processos de ensino que medeiam o desenvolvimento do currículo, fundados num consistente conhecimento teórico dos seus significados sociais e políticos, na medida em que são estes profissionais, os professores, que operacionalizam o currículo com vista a uma desejada eficácia dos seus propósitos, tão generalizada quanto possível.

O campo da teoria e da investigação curricular, que se constitui como macro-estrutura conceptual necessária à produção de pensamento científico sobre o currículo, expressa também uma representação das distâncias sobre as quais acima refletimos. Pela dicotomizaçao epistemológica da vertente crítica (analítica e interpretativa) versus a vertente técnica (operacional e práxica), gera-se uma quase incomensurabilidade entre os dois paradigmas, no sentido Kuhniano. Estas fraturas no plano teórico, que refletem a história complexa do conhecimento curricular, como campo e como objeto de estudo, processo que, como em todas as áreas do saber, resulta de uma complexa construção social.

Em termos de saber em uso, este cenário acaba por contribuir para cercear uma mobilização mais eficaz e integradora das diferentes racionalidades curriculares, quer na análise crítica de que o currículo deve ser alvo, quer na operacionalização do currículo pelos professores e líderes educativos, agravando as outras distâncias acima debatidas, nomeadamente a da visão praticista da ação docente face a uma perspetiva que se pretende mais teorizadora e reflexiva.

Retomo, em jeito de síntese, a análise que fiz noutra sede, já referida, desta centralidade da teorização no exercício da docência – essa profissão de que depende para tantos a possibilidade de aceder ao conhecimento que é afinal a substância do currículo. Não há lugar na ética profissional docente para ignorar esse compromisso com o conhecimento, sem o qual os que não forem bem sucedidos dificilmente serão realmente incluídos como cidadãos de pleno direito nas sociedades atuais.

A ênfase praticista, que tem dominado a cultura profissional dos professores, não contribui, a meu ver, para o crescimento desta profissão, tanto mais necessária quanto o mundo atual, dito sociedade da informação, está longe de ser um mundo do conhecimento, e muito menos de conhecimento para todos. Que a informação se torne conhecimento e que o conhecimento seja algo democraticamente acessível, num mundo em que conhecer é poder, depende em larga medida deste novo salto na profissionalização dos professores: a afirmação e o reforço de um saber profissional mais analítico, consistente e em permanente actualização, claro na sua especificidade, e sólido nos seus fundamentos. (Roldão, 2007,p.102)

 

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